Inês Espírito Santo Entre trajectórias profissionais e contextos familiares: mulheres portuguesas em França .

A emigração portuguesa em massa com destino a França faz parte do passado. No entanto, continua a existir uma forte presença portuguesa em França associada ao grande fluxo migratório dos anos sessenta e setenta. Por outro lado, não podemos descurar o facto que durante os últimos trinta anos a emigração portuguesa para França nunca se extinguiu por completo. Apesar da variação de ano para ano no número de entradas, na década de 1990 a 1999 entraram em França, segundo uma média anual, cerca de 3712 portugueses (INSEE, 2001). O objecto de estudo deste artigo situa-se, portanto, no cruzamento de interesses de duas sociedades na medida em que a emigração em Portugal e a imigração portuguesa em França continuam de uma actualidade indubitável.

Neste contexto pareceu-nos importante, através deste artigo, esboçar um retrato panorâmico e extensivo da situação migratória desta população: emigrantes portugueses e imigrantes em França. Um retrato representativo da população portuguesa em França que possibilite, num primeiro momento, a identificação dos principais traços desta população, e num segundo momento, a análise dos factores que influenciam as suas trajectórias migratórias e mecanismos de integração social na sociedade de instalação. Optámos por focalizar o nosso interesse sobre as mulheres portuguesas em situação migratória, uma vez que a imagem da mulher migrante portuguesa no seio da sociedade francesa e portuguesa continua sujeita a múltiplas representações erróneas. Os próprios estudos científicos sobre as migrações privilegiaram durante muito tempo o «neutro  masculino » em detrimento de uma possível leitura de género das migrações internacionais. Actualmente, a imagem das mulheres em situação migratória tem tendência a transformar-se tanto nas ciências sociais como no seio da opinião pública: elas são cada vez mais reconhecidas como actrizes sociais dos movimentos migratórios. Este é o ponto de partida deste artigo.

 

Atalhos metodológicos

Os dados do inquérito “Étude de l’Histoire Familiale” (EHF) de 1999, emparelhado ao Recenseamento da População (RP) em França de 1999 (INSEE/INED[2]), são particularmente propícios a este estudo. As informações sobre as trajectórias individuais, recolhidas a partir de uma amostra representativa ao nível nacional, permitirão conhecer o panorama actual e diversificado da posição que as mulheres emigrantes portuguesas em França ocupam, e deixar um traço explicativo sobre esse mesmo processo migratório.

A análise empírica incide sobretudo na exploração secundária do inquérito EHF versão 1999[3], cuja informação se baseia essencialmente na evolução das características familiares em França, fornecendo ao mesmo tempo informações sobre as origens geográficas, o percurso socio-profissional, as línguas transmitidas aos filhos no seio da família. Ou seja, este inquérito propõe questões de carácter biográfico e retrospectivo. No entanto, uma análise biográfica não teria sido possível sem recorrer à fusão realizada entre as informações recolhidas pelo inquérito EHF e as informações recolhidas dos mesmos indivíduos pelo RP. A fusão destes dois ficheiros maximizou as possibilidades de estudo – “surtout, elles fournissent les principales variables explicatives de l’exploitation : état matrimonial légal, lieu de résidence, niveau d’études et diplôme, catégorie socioprofessionnelle à quatre chiffres, indicateur de nationalité, date d’arrivée en France pour les immigrés (Cassan et al, 2000 :30). Importa salientar, por outro lado, que em termos estatísticos este inquérito (EHF) é fiável. O emparelhamento dos dados do EHF com o RP, além de fornecer informações importantes, permite interrogar uma amostra de grande envergadura, amplificando a performance dos resultados.

Os dados do inquérito EHF, tendo como amostra os indivíduos maiores de 18 anos, permite estudar as características das trajectórias migratórias das mulheres portuguesas em França. Mas, um problema coloca-se a partir do momento que nos debruçamos sobre uma população estrangeira. Pelo facto do objecto de estudo deste artigo corresponder, grosso modo, às mulheres que empreenderam uma mobilidade “inter-sistemas de ordem”[4], a nossa amostra é construída conforme a definição institucionalizadada do Haut Conseil à l’Intégration francês. Este define como “immigrée toute personne née étrangère à l’étranger qui vit en France, qu’elle ait ou non acquis la nationalité française”[5]  (in Spire, 1999 : 54). Neste mesmo sentido, a nossa amostra será conforme à categoria de imigrantes definida pelo INSEE (1999), ou seja, todo e qualquer imigrante não é necessariamente um estrangeiro, e reciprocamente. Entre os 380 000 indivíduos que preencheram o buletim EHF, contamos com 3499 adultos inquiridos nascidos em Portugal, entre os quais 1350 homens e 2149 mulheres. Este último efectivo, 2149 mulheres maiores de 18 anos nascidas em Portugal, será a população sobre a qual nos debruçaremos com maior acuidade.

Migrações portuguesas no feminino

A ideia que advoga que a história das migrações na Europa Ocidental foi concebida e construída sobre a imagem do homem que parte à procura de trabalho é mais ou menos consensual entre os investigadores em ciências sociais. Ou seja, esta imagem corresponde ao homem solteiro como força de trabalho barata (Golub et al, 1997 :19).

Durante muito tempo, a mulher migrante foi vista apenas na perspectiva do reagrupamento familiar, tendo sido raramente considerada como actriz social da sua própria mobilidade. Esta ocultação da migração feminina nos estudos sobre as migrações em geral,  pode estar associada, segundo Françoise Gaspard (1998), a duas razões principais: primeiro, as Ciências Sociais, nomeadamente a História e a Sociologia, foram maioritariamente produzidas por homens ignorando frequentemente a dimensão da diferenciação sexual; segundo, a ocultação das migrações femininas pode estar relacionada com o preconceito persistente sobre a ilegitimidade das mulheres no mundo do trabalho assalariado (p.89). Destas duas razões ressalta a importância de distinguir e não confundir dois aspectos: por um lado, a presença dos homens em relação às mulheres no contexto da migração; e por outro, as representações sobre as diferenças de género como fonte de invisibilidade das mulheres imigrantes.

Para as elites portuguesas do início do século XX, a partida maciça de milhares de portugueses para o Brasil foi considerada como um grave problema para o país. Com o objectivo de controlar esta hemorragia e essencialmente para servir os interesses económicos de Portugal, uma nova imagem de emigração vai ser criada entre as elites. A emigração vai começar a representar um recurso económico rentável para o país através das remessas enviadas pelos emigrantes. No entanto, para que esse ideal funcione foi necessário dificultar a partida das famílias já constituídas, pois “é [apenas] quando a família do emigrante fica na pátria que ele envia mais regularmente as suas economias” (Monteiro, 1993 :9). De acordo com esta imagem, as leis portuguesas que incidiam sobre a emigração vão estabelecer durante muito tempo filtragens para fazer face, por um lado, à decepção da população diante a situação social portuguesa, e por outro, à necessidade das remessas enviadas do estrangeiro. Assim, no sentido de conservar a ordem no tecido social português e assegurar o envio do dinheiro dos emigrantes, as autoridades portuguesas vão permitir que os homens emigrem dificultando a saída das mulheres e dos jovens.

Este modelo vai prevalecer até aos anos sessenta, altura em que a repartição do fluxo emigratório segundo o sexo ainda se mostrava predominantemente masculina.  Não obstante, a emigração das mulheres começa a ser notável a partir destes mesmos anos e aumenta progressivamente, neste caso no que respeita à emigração com destino a França.

Quadro 1. Repartição dos portugueses em França segundo o sexo, 1975-1999

Portugueses em França[6] RP 1975

 (efectivos)

RP 1982

(efectivos)

RP 1990

(efectivos)

RP 1999

(efectivos)

Conjunto

(taxa de feminização)

758 925

(46,2%)

764 860

(47%)

503 300

(46,5%)

571 874

(48,7%)

Mulheres 350 395 359 380 234 141 278 402
Homens 408 530 405 480 269 159 293 472

Fonte : INSEE (1984, 1992, 2001)

Os valores de entradas de portugueses em França segundo o sexo, a partir dos anos sessenta, refutam a ideia unívoca e determinista segundo a qual este fluxo migratório seria caracterizado pela saída maciça dos homens seguida das “suas mulheres”. Já em 1975, a população portuguesa em França contava com um efectivo de 758 925 indivíduos, entre os quais 350 395 mulheres, o que representava em relação a outras nacionalidades uma taxa de feminização muito elevada (46,2%). Em 1982, 47% da população portuguesa em França era do sexo feminino. Embora no recenseamento da população de 1990 essa taxa decresça 0,5 pontos percentuais, no recenseamento da população de 1999 a tendência de crescimento observada entre os anos 1975 e 1980 toma novo fôlego visto que a taxa de feminização se eleva a 48,7%, isto é 278 402 mulheres no total dos imigrantes portugueses em França (cf. quadro 1). Isto significa que a emigração portuguesa em massa com direcção a França era globalmente representada por um “modelo misto”. Na esteira de várias investigações (Peixoto, 1993; Volovitch-Tavares, 2001), os portugueses que emigraram em massa com destino a França nos anos 1960 conheceram uma emigração de tipo familiar. Porém, existe a tendência de reduzir a “migração em família” ao reagrupamento familiar das mulheres e das suas crianças ao marido ou pai já emigrados. Os dados do inquérito MGIS[7] realizado em 1992, mostram, por exemplo, que 8% dos homens portugueses casados chegaram a França posteriormente à migração das suas mulheres (Tribalat, 1996 :63). Outros chegaram directamente em família (Peixoto : 2000).

A data de chegada a França revela-se nesta perspectiva um indicador importante na compreensão das condições de migração. Os resultados do inquérito EHF retraçam bem, por um lado, a concentração do fluxo migratório numa quinzena de anos, isto é, grosso modo, dos anos sessenta ao ano de 1975. Por outro lado, a análise dos dados demonstra um ligeiro desfasamento entre a chegada das mulheres portuguesas em relação à dos homens, revelando-se muito fraco quando comparado com outras migrações como a da Argélia. Isto vem confirmar a ideia de que a emigração portuguesa com destino a França é uma “emigração mista”. O desejo de fugir ao serviço militar durante as guerras coloniais pode explicar em parte a ligeira preponderância dos homens no fluxo migratório com destino a França nos anos sessenta. A longa guerra colonial em África empurrou uma grande parte de jovens homens portugueses para o trabalho em França antes de serem convocados pelas autoridades militares. Segundo Albano Cordeiro, estes jovens « étaient présents dès le début de l’exode vers la France et continueront à venir jusqu’en 1974 : à cette date, ils seront des dizaines de milliers, peut-être près de 100 000 » (1999 : 106).

Alguns autores defendem que a taxa de feminização da população imigrante em França progride a partir de meados dos anos 1970 com o desenvolvimento de medidas facilitando o reagrupamento familiar (Héran, 2002). Outros autores relativizam a brusca feminização da população migrante a partir dessas medidas, alegando uma progressão lenta e variável: « en 1942, les femmes représentaient 42,6% des immigrés, 38,6% en 1954, 38,2% en 1962, 39,3% en 1968, 40,1% en 1975 et 42,8% en 1982 » (recenseamentos da população em França de 1946 à 1982, INSEE, citados em Golub et al, 1997 :21). Se a imagem clássica da mulher migrante no contexto do reagrupamento familiar pode dar conta de uma parte da realidade, ela tem tendência a ocultar outras, nomeadamente o papel activo que as mulheres podem exercer no projecto migratório ou no caso de as mulheres migrarem sozinhas: « avant 1976 existait déjà une composante féminine autonome dans les migrations de main-d’œuvre à travers notamment de la figure de la ‘bonne espagnole’ (relayée depuis dans ce rôle par l’effectif de la domesticité portugaise) et celle de l’active yougoslave » (Bentchicou, 1997 :28).

Parece-nos quase lógico que a migração feminina tenha sido frequentemente ignorada nas investigações, na medida em que as mulheres eram ignoradas em muitos outros domínios, tanto nas ciências sociais como no seio da sociedade. Mais especificamente, nos estudos sobre as migrações o “neutro masculino” foi considerado durante muito tempo como suficiente para representar toda a população migrante. O atraso na introdução da perpectiva de género nos estudos das migrações tem vindo a atenuar-se. Há mais de vinte anos um número especial da International Migration Review (1984) foi dedicado exclusivamente às mulheres migrantes. Muitos dos artigos integrados neste número sublinham a necessidade de inscrever as mulheres na história das migrações internacionais (entre outros artigos, cf. Morokwasic, Birds of passage are also women, 1984).

Sair da “marginalidade”, o contexto profissional…

O conceito de cidadania é um dos mais revisitados e redefinidos pelas instituições sociais. O conceito revelava-se bastante abrangente no momento da sua construção no século XIX, insistindo sobre as liberdades dos indivíduos. Hoje em dia ele é mais limitativo pois define a inclusão de uns pela exclusão de outros (Del Re, 1994). A ideia de cidadania é importante para este ponto (se as mulheres migrantes sairam ou não da “marginalidade”) pois ela concerne os direitos cívicos, políticos e sociais que tornam possível a participação de uma pessoa na sociedade na qual reside.

Esta questão ressuscita implicitamente a concepção de T.H. Marshall sobre a cidadania na medida em que o problema que se coloca aqui não é tanto de saber quem são os cidadãos, mas o que significa e o que compreende esta cidadania. Segundo a teoria de Marshall (1950), a cidadania inclui três tipos de direitos: civis, políticos e sociais atribuídos cronologicamente, respectivamente nos séculos XVIII, XIX e XX. O objectivo destes direitos seria de acabar com um estado de desigualdade social. A ideia de fundo é que a cidadania é constituída por direitos concretos e quantificáveis (por exemplo, o facto de se poder votar, de fazê-lo ou não). Várias críticas fizeram-se ouvir em relação à teoria de Marshall. Aqui, interessamo-nos com mais acuidade naquela que nos remete à androginia[8]. A cronologia histórica de Marshall apenas concerne os homens; a isto reúne-se o facto de que a materialização destes direitos não é a mesma consoante o sexo (Del Re, 1994 :73). Um ponto perdura fundamental na perspectiva de Marshall: a sua tipologia permite relevar as categorias de indivíduos não reconhecidos como cidadãos de parte inteira, entre os quais as mulheres mas também o(a)s imigrantes. Actualmente, como vimos acima, o conceito revela-se restritivo nas práticas de certas instituições e nas representações sociais.

Esta perspectiva remete-nos para as circunstâncias segundo as quais as mulheres migrantes são também vitimas de uma sociedade onde o homem representa o universal e a mulher “o outro”. As investigações e questionamentos feministas[9] constituíram uma alavanca de engrenagem no desenvolvimento dos estudos das migrações femininas. Uma das aprendizagens que podemos tirar destes questionamentos refere-se à categorização social baseada no sexo dos indivíduos. O género é um permanente processo de construção “no dia a dia, na interacção social, nas construções ideológicas, nunca se reduz aos caracteres sexuais, mas sim a um conjunto de atributos morais de comportamento, socialmente sancionados e constantemente reavaliados, negociados, relembrados” (Almeida, 1995:128). Mas num contexto migratório balizado pela desestabilização da vida quotidiana, as mulheres não poderiam ficar passivas diante dos processos de dominação e discriminação que se exercem sobre elas como mulheres e como migrantes (tanto no país de origem como no de instalação). Daí a necessidade incontornável de as tratar como actrizes sociais da sua própria mobilidade.

A presença das mulheres migrantes no mercado de trabalho vai ser um elemento chave no desabrochar de um interesse pelo papel activo destas mulheres na sua trajectória migratória, aliando de uma forma ou de outra os estudos de género e de migrações. No que diz respeito às representações sobre as migrações é importante insistir sobre o facto que o imigrante foi durante muito tempo (e ainda o é nalguns casos) legítimo aos olhos da sociedade exclusivamente como trabalhador. Esta representação, “femmes immigrées au travail » foi por consequência importante na visibilidade pública desta população  (Golub et al, 1997 :24). Assistimos, através do trabalho assalariado, a um percurso que se iniciou na indiferença social e se prolongou numa “individualidade cidadã” (talvez não completa). Este percurso tornou possível a participação das mulheres na sociedade na qual são membros. O próprio conceito de cidadania aparece associado historicamente ao trabalho. É o caso do conceito de cidadania de Marshall (1950) que, mesmo que esteja hoje obsoleto, correspondia ao contexto de pleno emprego e de crescimento desigual que as sociedades ocidentais conheceram depois da 2ª Guerra Mundial. Tratava-se, neste sentido, de uma “cidadania assalariada”, apesar de ela poder abranger indivíduos que não pagavam impostos.

Deste ponto de vista, conhecer o estatuto do trabalho feminino no seio da sociedade portuguesa pode ajudar a compreender alguma das características profissionais das mulheres portuguesas em França. É a partir desta base que esperamos encontrar alguns fragmentos de explicação sobre os comportamentos socioprofissionais das mulheres portuguesas em situação migratória.

Tanto a França como Portugal têm taxas elevadas no que diz respeito à actividade profissional feminina. Mas cada um destes países tem as suas próprias especificidades socio-historicas e a sua própria evolução. No espaço de quarenta anos, a França e Portugal testemunharam um forte crescimento na taxa de actividade feminina, seguindo a tendência global da Europa neste período. No entanto, esta taxa elevada de actividade feminina foi atingida em Portugal de uma maneira muito mais rápida. Ao invés de outros países que participaram na 2ª Guerra Mundial de uma maneira activa, a não participação de Portugal levou a que a feminização do mercado de trabalho fosse retardada nesse período. Todas as grandes guerras fazem apelo sobretudo aos homens para engrossarem as frentes de batalha, fazendo com que haja um lapso momentâneo na mão-de-obra que as mulheres vêm compensar. Numa dinâmica similar a esta, tanto o fluxo de emigração intenso que Portugal observou na sociedade portuguesa, como a longa guerra da independência das colónias que marcou Portugal entre 1961 e 1974 contribuiram para a abertura de portas do mercado de trabalho português às mulheres.

Este tipo de acontecimentos históricos deram origem a transformações sociais e simbólicas que contribuiram para a legitimação da mulher activa na sociedade portuguesa. Por outro lado, é também importante salientar que muitas das mulheres que deixaram Portugal nos anos sessenta eram de origem rural e por isso a experiência salarial em França era uma novidade. Ainda nos anos sessenta, o sector primário empregava quase metade da população portuguesa. Esta repartição sectorial em Portugal não deixa de estar associada aos constrangimentos estruturais cujo país teve submetido durante muitos anos. É apenas a partir da Revolução de Abril de 1974 que o Estado define certas políticas sociais que engendraram um aumento decisivo do emprego no sector terciário (Viegas e Costa (coord.), 1998 :30).

Sendo a maioria de origem rural, as mulheres portuguesas que chegaram a França nos anos sessenta sempre exerceram tarefas produtivas. Mas tendo em conta que o sector agrícola em certas regiões de Portugal era dominado pelas explorações familiares, as mulheres estavam excluídas das remunerações. Num contexto social como este, a distinção entre o estatuto da mulher activa e não activa não era claro no seio da sociedade. A chegada a França instituiu facilmente a relação salarial, pois estas mulheres não traziam nenhum constrangimento de ordem profissional ligado a um sistema social rígido. Aliás, tendo em conta a “lógica de poupança” por parte dos emigrantes portugueses, o salário duplo no seio da família era um elemento necessário no quotidiano.

Todo este contexto socio-histórico pode explicar em parte a forte presença das mulheres portuguesas no mercado de trabalho francês. Na faxa etária de 18 a 59 anos[10], 69,3% destas mulheres declararam exercer uma actividade profissional no momento do inquérito. Esta percentagem, além de representar a taxa mais elevada entre todos os grupos de mulheres imigrantes em França, é igualmente superior à das mulheres nascidas em França. No entanto, enquanto que 6,5% das mulheres nascidas em França se encontram em situação escolar, apenas 0,4% das mulheres imigrantes portuguesas declaram encontrar-se nesta situação. A idade no primeiro emprego destas mulheres é sintomática de uma muito curta escolaridade: quase 32% das mulheres imigrantes portuguesas tiveram o seu primeiro emprego aos 15 anos e menos, mais do que o dobro das mulheres nascidas em França.

Quando restringimos a idade das mulheres da amostra ao intervalo de 25 a 49 anos[11], evidenciam-se algumas mudanças de proporções. Outrora, segundo Maruani (2003), era entre as mulheres desta idade intermédia que se encontravam os elementos menos activos da população em idade de trabalhar. Doravante, grande parte das muheres declaram estar em actividade profissional no momento do inquérito. A diferença entre as mulheres nascidas em França e em Portugal desaparece quase totalmente quando examinamos a faxa etária dos 25 aos 49 anos[12]: a percentagem eleva-se a 73,3% para as primeiras e 74,1% para as segundas. Bastantes declararam estar em paragem da actividade profissional: 23,2% e 21,6%, respectivamente. Se examinarmos o tipo de inactividade associado a esta cessação da actividade profissional, apercebemo-nos de que 11,3% das mulheres nascidas em França e 9,8% das mulheres imigrantes de Portugal encontram-se no momento do inquérito no desemprego[13].

Por outro lado, a repartição segundo as categorias socioprofissionais das emigrantes portuguesas residentes em França permite elucidar a maneira pela qual estas mulheres são integradas na estrutura socioprofissional do país de instalação e também elucidar a posição social que elas ocupam na sociedade francesa. Observámos pelos resultados precedentes que as imigrantes portuguesas afluíram de forma maciça ao mercado de trabalho francês. Porém, como podemos verificar pelo quadro 2, o afluxo maciço destas mulheres foi concretizado maioritariamente por intermédio de profissões e sectores de actividade muito segmentados sexualmente e compostos de actividades que necessitam de poucas ou nulas qualificações.

Cerca de 30,3% das emigrantes portuguesas com idade comprendida entre os 18 e os 69 anos, declaram pertencer à categoria Personnels des services directs aux particuliers; outras 14,6% à categoria de Ouvriers non qualifiés. Identificamos uma diferença nítida quando se trata das mulheres nascidas em França, 6,6% e 4,2%, respectivamente. Na senda destes resultados é importante sublinhar que o ramo dos serviços directos aos particulares é inserido na categoria dos empregados. Esta categoria pode englobar um conjunto de situações profissionais bastante heterogéneas. Segundo Chenu, algumas actividades no interior desta categoria « présupposent une formation supérieure […], mais la majorité […] se situe à un niveau peu qualifié, similaire – et parfois inférieur – à celui des ouvriers ou des employés administratifs ou commerciaux » (2005 :65). Tendo em conta as poucas qualificações das mulheres imigrantes portuguesas em França, supomos que a maior parte delas se situe neste último grupo. Esta situação cria um estatuto de profissionalização « où persiste le statut de domestique et, par là, une forme de dépendance interpersonnelle héritée d’un lointain passé »[14] (Chenu, 2005 :68). Portanto, assistimos a uma interpenetração da esfera do trabalho assalariado das emigrantes portuguesas e da esfera privada dos indivíduos na sua grande maioria autóctones.

Quadro 2. Imigrantes portuguesas em França e francesas, de 18 a 69 anos, segundo a categoria socio-profissional (efectivos em milhares)

Categorias socio-profissionais França

(efectivos em milhares)

(%) Portugal

(efctivos em milhares)

(%)
 Sem resposta

818

4,8%

2

0,8%

 Agricultores independentes

197

1,0%

1

0,4%

 Artesãos

152

0,9%

3

1,2%

 Comerciantes e assimilados

216

1,3%

2

0,8%

 Empresários com + 10 assalariados

22

0,1%

 Profissões liberais

89

0,5%

1

0,4%

 Quadros função pública, profissões intelectuais e artísticas

480

2,8%

1

0,4%

 Quadros de empresas privadas

323

1,9%

1

0,4%

 Profissões intermédias ensino, saúde, função pública

1436

8,5%

3

1,2%

 Profissões intermédias administrativos e comerciais de empresas

801

4,7%

4

1,6%

 Técnicos

114

,7%

 Contramestres, encarregados

42

,2%

1

0,4%

 Empregados da função pública

1669

9,8%

18

7,1%

 Empregados administrativos de empresas

1643

9,7%

13

5,1%

 Empregados do comércio

743

4,4%

12

4,7%

 Pessoal de serviços directos a particulares

1114

6,6%

77

30,3%

 Operários qualificados

361

2,1%

9

3,5%

 Operários não qualificados

713

4,2%

37

14,6%

 Operários agrícolas

61

0,4%

1

0,4%

 Antigos agricultores independentes

200

1,2%

 Antigos artesãos, comerciantes e chefes de empresa

130

0,8%

 Antigos quadros e profissões intermédias

399

2,3%

 Antigos empregados e operários

1444

8,5%

11

4,3%

 Desempregados nunca tendo trabalhado

128

0,8%

1

0,4%

 Outros activos

3687

21,7%

56

22,0%

 Total       

16982

100,0%

254

100,0%

Fonte : « Enquête l’Etude Histoire Familiale »,  1999

No que diz respeito ao género, enquanto que as mulheres nascidas em Portugal são sobrerepresentadas na categoria dos empregados (47,2%), os homens nascidos em Portugal estão concentrados nas categorias socioprofissionais de operários, entre os quais 40,3% de operários qualificados e 16,3% de operários não qualificados (EHF 1999). Existe um aspecto importante que podemos destacar do cruzamento entre as variáveis “período de chegada a França” e “categoria socioprofissional”: uma grande parte dos indivíduos chegados depois de 1974 continua a concentrar-se nas mesmas categorias que foram ocupadas por aqueles que chegaram maciçamente no anos sessenta. Assim, 64% dos homens nascidos em Portugal e chegados a França depois de 1974 são operários (entre os quais 44,4% qualificados et 20% não qualificados) e 43,3% das mulheres chegadas a França no mesmo período situam-se na categoria Personnels des services directs aux particuliers.

Os imigrantes portugueses ocupam na sua grande maioria posições que se encontram na cauda da hierarquia socioprofissional francesa, onde predominam formas de emprego muito desvalorizadas socialmente. O sector da construção civil foi, desde o início, o principal empregador dos homens portugueses. As condições de acesso ao mercado de trabalho estavam estritamente relacionadadas com os factores estruturais da economia francesa. Por outro lado, existiram, numa mais pequena escala, dispositivos particulares de recrutamento no seio da sociedade francesa que íam para além das redes pessoais. No que diz respeito às mulheres, a Igreja Católica teve um papel central no recrutamento das primeiras a chegarem nos anos sessenta: « Les prêtres de la Mission [portugaise] furent souvent l’objet de la méfiance de nombreux catholiques en France, Portugais ou Français. Ils reprochaient aux missionnaires certaines conceptions ‘d’aide à l’emploi’, en particulier la façon dont la Mission organisait dans ses locaux le recrutement de domestiques, sous une forme que certains désignaient comme  ‘un marché aux esclaves’, par la bourgeoisie de l’ouest parisien » (Volovitch-Tavares, 1999 :93).

Posto isto, e sem negligenciar as características sociodemográficas de grande parte das mulheres portugueses em França, podemos constatar e avançar a hipótese segundo a qual estas mulheres são o alvo de um processo de segregação profissional baseado no género e na origem geográfica, ao qual voltaremos mais tarde.

 

Para ir mais longe… a actividade profissional.

A análise anterior mostrou que a percentagem de actividade profissional no interior do grupo das imigrantes portuguesas e do grupo das mulheres nascidas em França, no momento do inquérito, é mais elevada do que a actividade das outras populações femininas imigrantes em França. Embora as percentagens dos dois primeiros grupos se aproximem uma da outra, o exame que fizemos anteriormente sugeriu a existência de diferenças aquando da introdução de variáveis sociodemográficas ou de variáveis que davam conta da situação familiar. Para estas duas populações femininas, o efeito aparente, por exemplo, da idade sobre o facto de estar em actividade ou não no momento do inquérito (dados evidenciados pela realização de cruzamentos a três variáveis), poderia resultar das associações existentes entre esta variável e outras variáveis não introduzidas no cruzamento mas podendo ser muito influentes para os resultados.

Parece-nos então lógico colocar a questão se o facto de estar ou não em actividade profissional no momento do inquérito, para as imigrantes portuguesas em França e para as mulheres nascidas em França, pode ser explicado por uma série de características, utilizando o raciocínio estatístico do tipo “toutes choses égales par ailleurs”, ou seja, controlando o efeito das variáveis introduzidas para além da variável considerada. Neste sentido, poderemos testar a seguinte hipótese: certos grupos de mulheres têm mais tendência que outros para exercerem uma actividade profissional, em função do seu país de nascimento.

A regressão logística é um instrumento particularmente pertinente para responder a esta questão, pois esta técnica estatística permite-nos conhecer a relação do risco relativo de estar ou não estar em actividade profissional no momento do inquérito (variável dependente), mantendo constantes as outras variáveis incluídas no modelo de regressão (variáveis independentes). As imigrantes portuguesas e as mulheres nascidas em França são incluídas na mesma análise, o que nos possibilita a avaliação do efeito próprio do país[15].

Resultados

As taxas de actividade profissional nas duas populações em estudo são bastante similares. Porém, seria interessante verificar se mantendo outras variáveis constantes existe uma propensão diferenciada no exercer de uma actividade profissional no seio destes grupos.

Quadro 4.  Exercer uma actividade profissional no momento do inquérito. Modelos explicativos comportando cinco variáveis [16]

Modelo 1

Modelo 2

Modelo 3

Variáveis

Modalidades de referência / Modalidades activas

Testes estatísticos

Risco relativo

(odds ratio)[17]

Testes estatísticos

Risco relativo

(odds ratio)

Coeficiente

Testes estatísticos

Risco relativo

(odds ratio)

Constante

2,05

2,52

1,22

3,40

País de nascimento

França

Ref.

Portugal

n.s.

P<.001

0,75

-0,37

P<.001

0,69

Idade

de 20 a 24 anos

P<.001

0,67

-0,86

P<.001

0,43

de 25 a 29 anos

P<.001

0,88

-0,37

P<.001

     0,69

de 30 a 34 anos

Ref.

de 35 a 39 anos

P<.001

1,24

0,35

P<.001

1,42

de 40 a 44 anos

P<.001

1,43

0,52

P<.001

1,68

de 45 a 49 anos

P<.001

1,37

0,45

P<.001

1,56

de 50 a 54 anos

P<.001

0,8

-0,09

P<.001.

0,914

de 55 a 59 anos

P<.001

0,31

-1,07

P<.001

0,35

Idade em fim de escolaridade

de 10 a 12 anos

P<.001

0,67

-0,24

P<.01

0,79

de 13 a 15 anos

P<.001

0,75

-0,2

P<.001

0,82

de 16 a 18 anos

Ref.

de 19 a 21 anos

P<.001

1,62

0,42

P<.001

1,52

 22 anos e mais

P<.001

2,54

0,8

P<.001

2,22

Desconhecido

P<.001

0,27

-1,5

P<.001

0,22

Estado civil

Solteira

-0,03

n.s.

Casada

Ref.

Viúva

0,24

P<.001

1,27

Divorciada

0,35

P<.001

1,42

Número de filhos

0 filhos

0,47

P<.001

1,6

1 filhos

-0,26

P<.001

0,77

2 filhos

Ref.

3 filhos

-0,8

P<.001

0,45

4 filhos

-1,14

P<.001

0,32

5 ou mais filhos

-1,69

P<.001

0,19

População : Mulheres nascidas em França e em Portugal, de 20 a 59 anos

Fonte : EHF 1999

Significativo (p<.05); Muito significativo (p

n.s. : não significativo[18]

O primeiro modelo (quadro 4), apenas comporta o efeito do país de nascimento e como esperávamos ele não nos permite tirar conclusões. Não obstante, esta redundância estatística desaparece nos modelos subsequentes. Apesar das percentagens altas da actividade profissional nos dois grupos de mulheres estudadas, a actividade das mulheres continua a ser afectada, mais do que a dos homens, por factores individuais e familiares, entre outros.

Neste sentido, o segundo modelo, introduzindo as variáveis associadas ao plano individual (todas estas mantidas constantes) faz emergir resultados mais precisos. A análise do quadro 4 mostra que o risco de exercer uma actividade no momento do inquérito (em relação a não exercer) é 1,3 vezes menor (ou seja 1/0,75) no interior do grupo das imigrantes portuguesas em França do que no interior do grupo de mulheres nascidas em França.

E os factores familiares ? O efeito do país após o ajustamento de todas as variáveis de controlo consideradas no modelo 3 continua muito significativo e segue a mesma tendência. As mulheres portuguesas imigrantes em França têm uma probabilidade menor de estar a exercer uma actividade profisssional que as mulheres nascidas em França, todas as características do modelo mantidas constantes (probabilidade inferior a 1,5 pontos).

Podemos igualmente observar, no modelo 3, que os riscos relativos das modalidades da variável idade revelam que as mulheres dos dois grupos estudados com idade compreendida entre 35 e 49 anos têm um risco 1,5 pontos superior de estar em actividade profissional em comparação com as mulheres de idade compreendida entre 30 e 34 anos. Da mesma maneira, aquelas que terminaram os estudos entre os 19 e 21 anos têm 1,5  de risco superior de estar em actividade do que aquelas que acabaram os seus estudos na idade compreendida entre os 16 e os 18 anos. Esta probabilidade é ainda mais alta para aquelas que terminaram a sua escolaridade depois dos 22 anos (cerca de 2,2 pontos superiores). Estes resultados vêm confirmar o que vários estudos demonstraram sobre a existência de uma forte correlação entre níveis de escolaridade e actividade profissional.

No que diz respeito aos factores familiares podemos constatar que as divorciadas têm uma probabilidade superior de cerca de 1,42 pontos de exercer uma actividade profissional no momento do inquérito em relação às casadas. Inversamente, podemos observar que à excepção daquelas que não têm nenhum filho, as mulheres que têm um, três, quatro, cinco ou mais filhos têm um risco inferior de estar em actividade profissional do que aquelas que têm duas crianças.

Contexto familiar em contexto migratório

Ultrapassadas as teorias de Parsons sobre as diferentes funções do homem e da mulher no seio da família, os debates actuais interessam-se sobre a construção social do “destino” feminino no seio da família. Desde o fim dos anos sessenta, um debate académico e militante desenvolveu-se nos Estados Unidos em torno dos aspectos teóricos da articulação entre classe, género e etnicidade. Este debate eclodiu, entre outros, pela recusa de parte das “mulheres negras” do discurso excessivamente universalista do feminismo, desenvolvido sobretudo por mulheres brancas. Um dos pontos fulcrais da discussão era o facto das mulheres brancas defenderem que o principal lugar de opressão é a família, enquanto que para as mulheres negras a família seria um dos únicos lugares onde elas não eram obrigadas a confrontar a agressão exterior da violência racista.

Deste modo, um dos pontos de discórdia forjou-se em torno do facto das mulheres brancas não terem tido em conta a experiência vivida pelas mulheres negras e pobres em geral. Para estas últimas, as relações sociais de género construir-se-iam de maneira diferente pois elas têm a sua base num contexto de relações racistas. Bell Hooks, uma das representantes das reivindicações das mulheres negras avançava assim os seguintes argumentos: « en dépit du sexisme dans le contexte familial, elles peuvent y faire l’expérience de la dignité de l’estime de soi et de l’humanisation qui ne sont pas expérimentées dans le monde extérieur où elles sont confrontées à toutes les formes d’oppression. […] La dévalorisation de la vie de famille dans les discussions féministes reflète souvent la nature de classe du mouvement” (Bell Hooks in Poiret, 2005 :200). Enquanto para umas a « instituição » família revelava o quadro da opressão das mulheres, para as outras constituía um lugar de refúgio.

A questão da  família como estrutura de referência constituirá uma das questões centrais dos trabalhos das feministas negras. Todavia, este aspecto não é especifico às mulheres negras, ele encontra-se também presente em todos os grupos privados de acesso ao poder e aos instrumentos de dominação cultural (Poiret, 2005 :201). Nesta perspectiva, é importante não negligenciar a família no âmbito dos estudos migratórios. Por outro lado, não podemos esquecer dois outros elementos: um primeiro que se refere à não exclusividade dos percursos migratórios femininos em família; o segundo que nos remete à não exclusividade das relações das mulheres migrantes com o núcleo familiar. Mesmo tratando-se do caso onde a família determinou o processo de entrada das mulheres na sociedade de instalação ou do caso onde se criou uma família a posteriori, não está implicado o abandono do olhar sociológico sobre a experiência migratória pessoal das mulheres.

Posto isto, tudo se resume aqui ao facto de saber como abordar o lugar da família na experiência migratória das mulheres, sabendo que o universo social das mulheres não se reduz ao meio familiar. As mulheres migrantes têm uma individualidade própria, um comportamento pessoal e uma relação específica com a sociedade.

O fenómeno das migrações internacionais constitui um campo de reflexão privilegiado sobre este tema, na medida em que ele permite estudar por um lado a relação dos indivíduos com a sociedade em transformação, e por outro, compreender o lugar da família na experiência migratória das mulheres. Vários autores defendem que as mulheres imigrantes são actrizes de transformações não somente no interior do seu grupo familiar mas também nas sociedades de instalação. Segundo estes autores, a dupla situação de mulheres e estrangeiras dá-lhes a possibilidade de desenvolver um discernimento reflexivo sobre a sua própria posição, conduzindo-as a assumir uma postura de vanguarda nas transformações da sociedade (Golub et al, 1997 : 27). Consequentemente, elas situam-se no centro dos conflitos da sociedade, permitindo chamar a atenção sobre os novos desafios da modernidade, no interior e exterior da vida familiar.

No nosso caso, como vimos anteriormente, o grande fluxo migratório português dos anos sessenta e setenta seguiu um modelo misto ou familiar. A família aparece assim como um espaço[19] incontornável para compreender as trajectórias migratórias das mulheres nascidas em Portugal.  Esta perspectiva sensibilizou-nos para o facto de que as trajectórias das mulheres migrantes portuguesas têm que ser analisadas como um duplo processo inscrito tanto num vasto contexto socio espacial como num contexto de relações sociais, dentro das quais a família constitui um dos elementos centrais. Aqui ficam alguns traços de caracterização.

No que diz respeito às práticas matrimoniais das mulheres nascidas em Portugal instaladas em França, os dados mostram uma forte propensão a que estas mulheres conheçam uma história matrimonial que poderiamos chamar de “regular”, pois 73,7% declaram no momento do inquérito ter uma (e a única) vida de casal. Esta percentagem revela ser uma das mais altas, próxima das mulheres nascidas na Turquia (74,7%), quando comparada com outras mulheres imigrantes em França e nascidas em diversos países. Por outro lado, vinte pontos de diferença separam as mulheres nascidas em Portugal das que nasceram em França. Apenas 52,9% destas últimas declaram ter uma (e a única) vida em casal. Já as percentagens das mulheres nascidas nos outros países da Europa do Sul, entre os quais a Espanha (55,6%) e a Itália (55,1%), situam-se mais próximas dos comportamentos das mulheres nascidas em França.

Inversamente, as mulheres nascidas em Portugal são muito poucas a terem conhecido várias vidas de casal no passado. Apenas 0,8% declaram ter conhecido esta situação outrora, contra 3,1% das mulheres nascidas em França. As imigrantes portuguesas têm também uma baixa percentagem de resposta na modalidade “nunca ter tido uma vida de casal” (isto é 7,3%), contra 16% das mulheres nascidas em França.

A composição da família é um indicador importante para compreender o sentido que as imigrantes portuguesas dão ao contexto familiar, podendo da mesma maneira dar conta de eventuais assimetrias de género. O cruzamento dos cônjuges segundo o país de nascimento permite constatar que, no interior da população portuguesa instalada em França, a homogamia[20] é bastante elevada (quadro 3) : 60,2% das mulheres são casadas com um indivíduo nascido igualmente em Portugal, enquanto que para os homens esta percentagem encontra-se em 56,6% (27,3% destes últimos casaram-se com mulheres nascidas em França). As uniões mistas no caso das mulheres nascidas em Portugal são inferiores em 8 pontos percentuais em comparação com os homens, ou seja, apenas 19,3% destas mulheres são casadas com um indivíduo nascido em França.

A comparação entre as mulheres imigrantes em França nascidas em diferentes países revela que a proporção das uniões mistas respeitante às mulheres nascidas em Portugal está entre as mais baixas. Consequentemente a tendência para a homogamia encontra-se entre as mais elevadas. Apenas as mulheres nascidas na Turquia se encontram numa situação mais « extrema » (4,9% de uniões mistas e 76,8% de homogamia). Das mulheres nascidas nos países apresentados no quadro 3 (Espanha, Itália, Argélia, Marrocos, Tunisia, exceptuando Portugal e Turquia), mesmo se existe uma ligeira preponderância para homogamia, a percentagem de uniões mistas com um cônjuge nascido em França varia entre 36,3% para as mulheres nascidas em Espanha e 25,8 para as mulheres nascidas em Marrocos, percentagens claramente mais altas que aquelas observadas anteriormente para as portuguesas e para as turcas. Podemos então constatar, que a escolha do parceiro(a) no seio da população imigrante portuguesa cai raramente em indivíduos de origens sociais e culturais afastadas[21]. Se a união mista existe, ela não constitui a regra.

Quadro 3. Imigrantes casadas em França, nascidas em diversos países, segundo o cruzamento da origem geográfica dos cônjuges (efectivos em milhares) [22]

País de nascimento cruzamento dos cônjuges, segundo a origem geográfica União mista

(casada com um indivíduo nascido em França)

Homogamia

(casada com um indivíduo nascido no mesmo país)

Espanha Efectivo 65 67
% linha 36,3% 37,4%
Itália

 

Efectivo 79 96
% linha 35,1% 42,7%
Portugal

 

Efectivo 51 159
% linha 19,3% 60,2%
Argélia Efectivo 179 220
% linha 32,2% 39,6%
Marrocos Efectivo 77 120
% linha 25,8% 40,1%
Tunisia

 

Efectivo 45 64
% linha 29,2% 41,6
Turquia

 

Efectivo 4 63
% linha 4,9% 76,8%

Fonte : EHF 1999

 

A estrutura da família em Portugal dos anos 1960 era do tipo nuclear : « parents et enfants, entretenant un réseaux de relations plus ou moins intenses et étendues avec la parenté, notamment en milieu rural » (Leandro, 1995 :24). Embora tenham existido várias transformações na família portuguesa desde essa época, como por exemplo a diminuição do número de crianças e o crescimento do número de divórcios, a família nuclear construída em torno do casal e dos filhos continua a predominar no cenário português (Wall, 2005). Cruzar as variáveis de presença de filhos com a prática conjugal das mulheres nascidas em Portugal em situação migratória pode evidenciar a reprodução do modo de vida familiar conhecido antes da migração.

Assim, o exame deste cruzamento permite observar que 78% das mulheres nascidas em Portugal vive em casal no momento do inquérito (contra 60,6% para as mulheres nascidas em França). Entre elas, 94,2% têm filhos (contra 86,6% para as mulheres nascidas em França). Por outro lado, podemos constatar que apenas 17,1% das mulheres nascidas em Portugal e com filhos não vivem actualmente ou nunca viveram em casal, enquanto que esta percentagem encontra-se em 28,4% para as mulheres nascidas em França.

Para completar estes dados, parece-nos importante assinalar que entre as mulheres nascidas em Portugal, uma grande parte, 79,8%, declara ter sido casada uma só vez, contra 63% das mulheres nascidas em França. Por sua vez, entre estas últimas 10,6% nunca se casaram e 4,7% casaram-se duas vezes. No caso das mulheres nascidas em Portugal, estas percentagens situam-se respectivamente em 5,3% e 2,3%.

No momento do inquérito, o número de filhos médio parece ir mais de encontro à média nacional do seu país de origem (Wall, 2005) do que do seu país de instalação (Brewster e Rindfuss, 2000). As mulheres nascidas em Portugal têm uma média de 2,3% de filhos, contra 1,7% de filhos nas mulheres nascidas em França.

Estes resultados sugerem que as mulheres nascidas em Portugal, em relação às mulheres nascidas em França, seguem os modelos familiares ditos “tradicionais”, onde o casamento único e a família nuclear predominam. Estes modos de funcionamento contribuem para cristalizar os direitos e deveres no seio da família,  com contornos (re)criados em contexto migratório.

Para ir mais longe… intenção de retorno.

A intenção de voltar ao país natal faz parte do “mito do retorno” sempre associado à imigração. O senso comum sobre o retorno dos emigrantes portugueses em França construiu-se em torno da ideia segundo a qual as mulheres, tendo filhos na sociedade de instalação, têm mais tendência a afastar a intenção do retorno dos seus projectos de migração. Pela análise das respostas das mulheres e dos homens portugueses imigrantes em França à questão  «souhaitez-vous retourner vivre un jour dans la région de votre enfance » podemos observar uma maior intenção de retorno da parte dos homens (36,2%) do que da parte das mulheres (33,6% (quadro 4)). Esta diferença torna-se mais clara quando a resposta se dá pela negativa. Assim, enquanto apenas 26% dos homens declaram não ter intenção de retorno, esta percentagem sobe a 32% no que diz respeito às mulheres.

Quadro 4. Imigrantes portugueses em França, consoante o sexo e a intenção de retorno à região da infância (efectivos em milhares)

Intenção de retorno Sim Não Não sei Já vive  Total
 Mulheres

 

 

Efectivo 85 81 82 5 253
% linha 33,6% 32,0% 32,4% 2,0% 100,0%
% coluna 50,0% 57,0% 50,0% 41,7% 51,8%
 Homens

 

 

Efectivo 85 61 82 7 235
% linha 36,2% 26,0% 34,9% 3,0% 100,0%
% coluna 50,0% 43,0% 50,0% 58,3% 48,2%
 Total       

 

 

Efectivo 170 142 164 12 488
% linha 34,8% 29,1% 33,6% 2,5% 100,0%
% coluna 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%

Fonte : « Enquête l’Etude Histoire Familiale »,  1999

Desejámos nestes termos testar o efeito próprio da variável sexo sobre a intenção de retorno, controlando outras características. Para isso seguimos as mesmas etapas da regressão logística precedente[23].

Resultados

O quadro 5 (em baixo) representa três modelos emparelhados. Antes de apresentarmos este quadro final tivemos que suprimir da análise uma variável independente respeitante ao contexto familiar que o senso comum nos levava a crer decisiva para a intenção de retorno. Falamos do número de filhos. Esta supressão deve-se ao facto de nenhuma das modalidades ser significativa aquando do controlo de outras variáveis.

Quadro 5.  Intenção de retorno no momento do inquérito. Modelos explicativos comportando oito variáveis.  

  Modelo 1 Modelo 2 Modelo 3

Variáveis

Modalidades de referência / Modalidades activas

Teste estatístico

Risco relativo

(odds ratio)[24]

Teste estatístico

Risco relativo

(odds ratio)

coeficiente

Teste estatístico

Risco relativo

(odds ratio)

Constante

0,5

0,58

-0,39

0,68

Sexo

Homem

Ref.

Mulher

n.s.

P<.01

0,78

-0,32

P<.01

0,73

Estatuto matrimonial

Solteira

P<.001

0,6

P<.001

0,63

-0,3

P<.05

0,74

Casada

Ref.

Viúva

n.s.

n.s.

-0,26

n.s.

Divorciada

P<.01

0,61

P<.01

0,61

-0,56

P<01

0,57

CSP Agricultores independentes, Artisãos, Comerciantes 

n.s.

0,16

n.s.

Quadros, profissões intelectuais e prof. Intermédias

P<.001

0,47

-0,3

n.s.

Empregados da função pública 

n.s.

-0,27

n.s.

Empregados administrativos, de empresa e de comércio

P<.05

0,66

-0,05

n.s.

Pessoal de serviços directos a particulares

P<.01

1,45

0,21

n.s.

Operários

Ref.

Reformados

P<.01

0,61

-0,69

P<.001

0,50

Outros sem actividade profissional

n.s.

-0,18

n.s.

Ano de chegada a França Antes 1964 

 

-0,3

n.s.

De 1965 a 1974 

Ref.

De 1975 a 1999 

0,55

P<.001

1,73

Desconhecido

0,04

n.s.

Transmissão da língua aos filhos Apenas o Francês 

-1,83

P<.001

0,16

Francês e outra língua

-0,59

P<.001

0,56

Francês apenas ocasionalmente 

Ref.

Nunca o Francês

0,02

n.s.

Desconhecido

-1,15

P<.001

0,32

Estatuto do Alojamento Proprietário

Ref.

Arrendamento de uma alojamento mobilado ou vazio 

0,68

P<.001

1,96

Alojamento gratuito

0,79

P<.001

2,19

Sem resposta ou alojamento fora do normal

0,87

P<.001

2,38

População : Portugueses imigrantes em França com mais de 18 anos

Fonte : EHF 1999

Significativo (p<.05); Muito significativo (p

n.s. : não significativo

 

O modelo 1 não nos permite dizer o que quer que seja sobre o efeito próprio do sexo sobre a questão da intenção do retorno. Isto significa que as variáveis associadas ao contexto familiar, nomeadamente o estatuto matrimonial (incluído no modelo) e o número de filhos (excluído precisamente por não apresentar nenhum efeito aparente), contrariamente às ideias do senso comum, não influenciam em nada a intenção de retorno das mulheres em relação aos homens. Já no conjunto dos imigrantes o estatuto matrimonial parece influenciar nessa intenção.

O efeito próprio do sexo na intenção do retorno começa a ser significativo quando acrescentamos ao modelo 1 as categorias socioprofissionais. Assim, com o modelo 2 constatamos que o risco de uma intenção positiva de retorno no momento do inquérito é 1,3 vezes inferior (isto é 1/0,78) nas mulheres imigrantes em França do que nos homens nas mesmas condições (tendo as variáveis -características socioprofissionais e estatuto matrimonial- sido mantidas constantes).

O terceiro modelo[25], o mais completo, mostra que a conjugação das variáveis associadas ao contexto familiar, profissional e migratório (mantidas constantes), mantém o efeito próprio da variável sexo muito significativo. Neste sentido, podemos sublinhar o facto de que a probabilidade das mulheres imigrantes intencionarem o retorno é sempre inferior à dos homens (isto é cerca de 1,4 pontos).

A partir deste terceiro modelo, podemos igualmente constatar que grande parte das modalidades associadas ao processo migratório introduzidas no modelo têm um efeito próprio extrememente significativo. Assim, cada uma das modalidades da variável estatuto de alojamento tem um risco relativo de intencionar o retorno que é acrescido em relação à modalidade de referência – ser proprietário de um alojamento em França. Da mesma maneira, o risco relativo de intencionar o retorno é acrescido 1,75 pontos para os imigrantes portugueses que chegaram a França depois de 1975 em relação àqueles que chegaram entre 1965 e 1974. Tendo em conta que nenhuma significação está associada ao coeficiente de regressão daqueles que chegaram a França antes de 1965, não poderemos concluir que a data de chegada a França tem uma relação causal com as intenções de retorno.

Notamos, por outro lado, que a variável de transmissão da língua aos filhos tem um efeito significativo na variável dependente de intenção de retorno. Para aqueles que apenas transmitem o francês ou que comunicam de maneira bilingue com os seus filhos, o risco relativo de intencionar o retorno é reduzido em relação à categoria de referência, ou seja aqueles que apenas transmitem o francês ocasionalmente (respectivamente de 6,25 e de 1,78 pontos inferiores).

Por fim, a realização de uma regressão logística (não apresentada neste artigo) apenas com as mulheres imigrantes portuguesas e com as mesmas variáveis da regressão logística precedente conduz-nos a resultados globalmente similares àqueles que acabámos de sublinhar nos dois últimos parágrafos. Apenas a variável do período de chegada em França fornece um resultado diferente, permitindo-nos confirmar a hipótese invalidada até aqui, segundo a qual a intenção de retorno das imigrantes acresce para aquelas que chegaram a França depois de 1974 e reduz para aquelas que chegaram antes de 1965 (respectivamente 1,5 superior [p<.001] e 1,6 inferior [P>.01]. Podemos, portanto, concluir, tendo todas as características introduzidas no modelo sido mantidas constantes, que a data de chegada a França acresce ou reduz a probabilidade das intenções de retorno.

 

O impacto da migração: estatuto paradoxal

Muitos dos investigadores que construíram o seu objecto de estudo em torno das mulheres imigrantes evidenciaram as estratégias que estas desenvolviam em situação migratória. Desde a criação de espaços de contra-poder até às práticas de resistência, uma das questões centrais de todos estes trabalhos era demonstrar a existência de um projecto de vida e de futuro, mesmo se elas tivessem emigrado no âmbito do reagrupamento familiar.

Outros estudos demonstraram que a experiência migratória para algumas mulheres opera uma desestabilização no meio familiar, onde as relações de sexo “tradicionais” são postas em questão ou mesmo invertidas. Este é o caso da emigração das mulheres da República Dominicana com destino a Madrid (Casas, 1997), das Filipinas em Paris (Mozère, 2005), das Vietnamitas na Bélgica (Ghequière, 1996), ou ainda das imigrantes do Salvador em Los Angeles (Zentgraf, 2002). Estes estudos sublinham o facto que as relações de sexo são postas em causa pelo estatuto ganha-pão adquirido pelas mulheres em situação migratória. Elas tornam-se em certos casos o “chefe de família” porque são a principal fonte económica do lar. Sucederam-se outros trabalhos que mostraram a necessidade de analisar diferentemente a relação à actividade profissional segundo as populações migrantes, como é o das mulheres argelinas em França com o trabalho informal  (Boulahabel, 1996)[26].

Todos estes trabalhos empíricos mostram que a presença das mulheres no mercado de trabalho (“formal” ou “informal”) torna possível, no âmbito da experiência migratória, uma autonomia económica,  mas também uma tomada de consciência de uma “identidade sexuada”. Esta autonomia, reconhecida socialmente, proporciona a estas mulheres a ideia de resistência às evidências de uma imagem que outros lhes inflingem.

Nesta pespectiva, podemos-nos dar conta que a adaptação ao país de instalação constrói-se pelas capacidades de acção e de reinterpretação da cultura de origem no seio da sociedade onde estas mulheres se instalaram. Uma das contribuições deste artigo vai precisamente neste sentido, fazendo emergir novos elementos e renovando outros sobre as imigrantes portuguesas em França. O estudo dos percursos migratórios, centrado em concreto no contexto profissional e familiar destas mulheres, possibilitou a focalização sobre a maneira segunda a qual esta população reconstrói os seus quadros de interação social na sociedade de instalação.

Os dados do inquérito EHF 1999 evidenciou a posição que as mulheres portuguesas ocupam no espaço francês. Para chegar a este resultado foi necessário recorrer em todo o processo de exploração dos dados a dois indicadores principais de análise: o sexo e o país de nascimento. Constatámos que tanto os homens como as mulheres participaram nos fluxos migratórios de massa de Portugal para a França nos anos sessenta e setenta. Comummente vistas como esposas dos imigrantes trabalhadores, as imigrantes portuguesas têm um papel idêntico aos homens em todos os aspectos relacionados com o movimento migratório. É provável que este ponto de vista não seja enfatizado a não ser através de um estudo baseado numa leitura de género das migrações internacionais, onde as mulheres não são consideradas como objecto isolado mas como actrizes sociais do processo migratório.

A entrada maciça das mulheres portuguesas no mercado de trabalho francês é sem dúvida associada tanto às especificidades sociohistóricas da sociedade de origem como a uma forma de adaptação a um sistema social centrado no estatuto do trabalhador na sociedade francesa. Observámos que as imigrantes portuguesas e as mulheres nascidas em França detêm taxas de actividade profissional no momento do inquérito equivalentes e bastante superiores a outras populações. Quase três quartos destas mulheres declaram ter uma actividade profissional na idade compreendida entre 25 e 49 anos, considerada como o período da maternidade. Esta taxa mostra que domina o modelo de actividade contínua. Para os dois grupos de mulheres a maternidade já não revela ser um constrangimento extremo em relação à actividade profissional. Mas estas semelhanças não devem ocultar certas informações. As regressões logísticas efectuadas mostraram que a propensão para a actividade profissional das imigrantes portuguesas é inferior à das mulheres nascidas em França se as compararmos em situação idêntica. Porém, este racíocinio estatístico não nos elucidou sobre as características que poderiam influenciar ou não a entrada das imigrantes portuguesas no mercado de trabalho francês.

O papel da família para as mulheres portuguesas parece ser importante para compreender o lugar que elas ocupam no seio da sociedade francesa, visto que a maior parte delas vivem em casal (um único casamento com um cônjuge nascido em Portugal) com filhos (dois). Reconhecemos os limites dos dados do inquérito EHF para estudar os desafios de género que se criam no interior destas famílias, pois não tivemos acesso a indicadores susceptíveis de nos informar sobre a partilha de tarefas domésticas entre homens e mulheres, os seus horários, a coesão conjugal, ou seja, sobre o contexto de cohabitação. Apesar destes limites, a nossa análise revelou que os imigrantes portugueses maiores de 18 anos, mulheres e homens, têm um percurso familiar de que emergem traços de atribuição de uma grande importância ao vector familiar. Por outro lado, os indicadores da história familiar permitiram identificar atitudes e orientações que fazem do espaço familiar um espaço onde se conjugam formas de interacção e de negociações talvez menos contaminadas por relações de dominação subjacentes à condição de mulher e de migrante. Num contexto de migrações, onde os quadros de interacção social se encontram desestabilizados à entrada na nova sociedade de instalação e onde a necessidade de (re)estabilização se torna imperativa, pareceu-nos possível que o núcleo familiar para estas mulheres seja propício à reinvenção de modelos familiares, talvez mais contratuais.

Da mesma maneira, a acumulação de uma vida familiar com a aquisição de uma actividade remunerada sugere que esta articulação não seja feita de maneira aleatória. Ela decorre de uma organização familiar no mínimo coerente e da existência de relações sociais fora do núcleo familiar. A família não constitui a única entidade que intervém nas trajectórias destas mulheres, mas pode ser que seja também através dela que se engendram novas vias de investimento público. Esta perspectiva remete-nos à conjugação das teorias de Singly e de Sciolla. Tanto uma como outra explicitam o funcionamento da organização familiar em termos horizontais, onde cada um dos elementos da família manifestaria a identidade pessoal do outro e onde o núcleo familiar não seria contraditório com as formas de cidadania na esfera pública.

Através do recurso a formas de emprego específico, todos os dados saídos do inquérito EHF de 1999 testemunham que a entrada maciça das imigrantes portuguesas no mercado de trabalho francês se opera pelo intermédio de empregos bastante segmentados em termos sexuais e encontrando-se na cauda da hierarquia socioprofissional, na maior parte situando-se na categoria de Pessoal de serviços directos a particulares.

Quando falamos de uma população em situação migratória temos tendência a associá-la a um conjunto homogéneo, quiçá com um destino idêntico. A utilização da questão que nos indica as intenções de retorno desta população possibilitou-nos a contrução de um panorama complexo deste “destino”. Sem negligenciar o facto que estas intenções podem ser transformadas ao longo do tempo e sem querer reproduzir uma indissociabilidade entre os migrantes e o retorno obrigatório às “raízes”, este indicador revelou-se bastante útil para a compreensão do processo migratório destas mulheres.  Os testes estatísticos mostraram que a intenção de retorno é inferior à dos homens em situação comparável, menos devido ao contexto familiar (como muitas vezes é avançado pelo senso comum) do que aos factores migratórios.

As comparações que pudemos efectuar ao longo deste estudo operacionalizam a articulação dos traços distintivos de sexo e origem geográfica, permitindo situar o percurso das imigrantes portuguesas no contexto francês. Estas comparações clarificaram os mecanismos das relações sociais de género, de classe e de origem geográfica. Num momento onde o emprego é valorizado e dá valor às imigrantes, uma vez que instiga a ultrapassar uma marginalidade construída em torno do imigrante trabalhador, estas mulheres vêem-se associadas ao termo “serviços” e « qu’on le veuille ou non, [ce mot] fait écho, dans l’imaginaire collectif, soit au service religieux et au bénévolat, soit à la servilité » (Angeloff in Maruani (dir), 2005 :281). Os principais indicadores deste estudo, relacionados com o contexto familiar e profissional em situação migratória mostram, portanto, que a integração social das imigrantes portuguesas em França é uma realidade que se desenvolve sem dúvida de uma maneira paradoxal.

O complemento qualitativo a esta análisa quantitativa impulsionaria a compreensão sobre as formas como estas mulheres percepcionam, no quotidiano, o paradoxo da sua posição migratória. Sublinhamos por fim e a partir dos dados deste artigo a importância de apreender sociologicamente a feminização do movimento migratório com um olhar focalizado na associação das relações sociais de sexo, classe e lugar de origem, na medida que a posição ocupada no seio destas relações interconectadas influencia as percepções e práticas indivíduais.

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[1] Dada a natureza da fonte analisada, a maior parte destes migrantes devem ser do tipo permanente, isto é, aqueles que têm a intenção de ficar em França mais de um ano. Com a abolição do “passaporte emigrante” em 1988 as saídas de Portugal (temporárias ou permanentes) deixaram de poder ser contabilizadas. A esta dificuldade de contabilização veio se juntar posteriormente a livre circulação dos indivíduos no seio da União Europeia estipulada pela Convenção de Schengen em 1995.

[2] Institut National de la Statistique et des Études Économiques (INSEE) e Institut National des Études Démographiques (INED).

[3] No âmbito do Recenseamento da População de 1999, o buletim complementar EHF (4 páginas) foi preenchido por 380 000 indivíduos maiores de 18 anos: 145 000 homens e 235 000 mulheres. Neste sentido, os agentes recenseadores distribuiram a um lar em cinquenta o questionário complementar EHF (buletim suplementar auto-administrado). Destes buletins, 368 000 puderam ser emparelhados aos dados do Recenseamento da População.

[4] Sistema visto ao mesmo tempo como espaço geográfico, politicamente definido e como espaço culturalmente determinado (no sentido antropológico do termo).

[5] Esta definição do Haut Conseil à l’Intégration aparece em 1990, com o objectivo, por um lado, de especificar a categoria de imigrantes segundo as condições de aplicação do “modelo francês de integração”, e por outro, de dispôr de um utensílio susceptível de medir a “integração”. O critério de lugar de nascimento é utilizado, neste contexto, numa perspectiva mais de integração do que demográfica (Spire, 1999 : 54).

[6] É importante sublinhar que houve uma mudança na categoria de estrangeiros : enquanto que os valores do Recenseamento da População que vai do ano 1975 ao ano 1990 têm em conta os portugueses mononacionais (podendo ter nascido em Portugal ou em França), os valores do Recenseamento da População de 1999 têm apenas em conta aqueles que nasceram em Portugal, podendo ter adquirido posteriormente a dupla nacionalidade.

[7] Inquérito : « Mobilité Géographique et Insertion Professionnelle ».

[8] Outras críticas dizem respeito ao seu “europocentrismo”, quiçá ao facto de se aplicar apenas ao Reino Unido (a sequência histórica da obtenção dos diferentes direitos depende do país no qual nos interessamos). Por outro lado, a sua percepção linear da história foi igualmente alvo de críticas : o processo de aquisição dos direitos parece ter sido feito “naturalmente”, Marshall não teve em conta as lutas que foram necessárias para os obter (Del Re, 1994).

[9] O objectivo que tem por base a igualdade entre homens e mulheres, por exemplo, só se tornou uma prioridade a partir de um longo processo de desconstrução e de ilegitimação da ordem masculina e patriarcal. Esta prioridade foi bastante tempo julgada como secundária em relação às desigualdades económicas e sociais em termos de classes, tanto no palco político como no debate público.

[10] Nesta secção, o intervalo de idade utilizado depende das informações a recolher. Geralmente realizaremos uma triagem da amostra, nomeadamente as mulheres que têm idade igual ou inferior a 59 ou 69 anos, na medida em que os comportamentos socioprofissionais das mulheres imigrantes de Portugal poderiam ser maximizados artificialmente em relação à população autoctone.

[11]A classe de 25 a 49 anos é considerada como a idade da maternidade (Maruani, 2003 :15).

[12]Quando observamos a percentagem de mulheres em actividade profissional no momento do inquérito segundo a faxa etária (18-24, 25-29, 30-34 até 55-59 anos), damo-nos conta de que enquanto as mulheres nascidas em França atingem a sua taxa de actividade mais elevada de 40 a 44 anos (75,7%), as mulheres nascidas em Portugal atingem o seu máximo no intervalo de 45 a 50 anos (80%).

[13]Segundo Eurostat (Inquérito sobre a Força de trabalho) a taxa de desemprego feminino em 2000 em França era de 11,5% (in Maruani, 2003 :56).

[14]Segundo Marchand e Thélot (1991), « à partir de 1880, diminuent et puis disparaissent les domestiques hommes. L’apogée de la domesticité en France date du début de la 3ème République. A la veille de la guerre de 1914-1918, presque tous les domestiques sont des hommes » (p.15).

[15] Com o intento de homogeneização dos testes empíricos, as regressões logísticas desta secção foram todas efectuadas com uma mesma amostra. Trabalhamos assim com uma população de 148 304 mulheres com idade compreendida entre 20 e 59 anos. Entre estas encontram-se 146 417 mulheres nascidas em França e 1 887 mulheres nascidas em Portugal instaladas em França. Antes de se ter seleccionado exclusivamente as mulheres com idade compreendida entre os 20 e 59 anos, o número total de mulheres nascidas em França e em Portugal no inquérito EHF de 1999 era de 214 989 (respectivamente 212 840 e 2149 mulheres). Optámos, por outro lado, por conservar certos valores em falta com o objectivo de não perder muitos efectivos e por isso informações.

[16]Para evitar uma situação de coliniaridade estrita, uma modalidade de referência foi deliberadamente distinguida no modelo de regressão. Para isso seleccionámos a moda de cada variável.

[17]Os riscos relativos são estimados em relação à modalidade de referência. Um valor superior a 1 indica um risco relativo positivo, um valor inferior a 1 será negativo.

[18]Temos aqui três modelos “emparelhados”, cada um em relação ao precedente representa uma melhoria da modelização estatística. Exptuando o modelo 1, o quadro de regressão logística realizado indica que os dois últimos modelos utilizados possuem boas qualidades porque o X2 (modelo chi-square) de cada modelo (permitindo apreciar a contribuição do modelo explicativo da variável dependente), são muito significativos em cada caso.

[19] Segundo de Singly (1996) a família contemporânea caracteriza-se « moins comme une institution que comme espace de relations affectives, personnelles et (assez) durables » (p.14).

[20] Neste capítulo, chamaremos cruzamento homogamo quando dois conjûges são nascidos num mesmo país.

[21] Segundo Tribalat, estudar a propensão à união mista das mulheres imigrantes em França não tem sentido a não ser para aquelas que emigraram para França ainda solteiras. No entanto, o inquérito EHF não nos dá acesso a esse tipo de informações, ou melhor, não temos acesso à informação do estado civil no momento da chegada. De toda a maneira, os dados do MGIS indicam que é apenas nas migrantes nascidas em Portugal e chegadas antes dos seus 16 anos que a união mista é mais elevada do que nas solteiras chegadas depois de 15 anos (Tribalat, 1996 :86). O enviezamento desta questão parece ser de pouca relevância no caso das mulheres nascidas em Portugal!

[22] A opção de apresentar exclusivamente estes países está associada ao facto deles não estarem reagrupados nas categorias como “outro em África”ou “outro na Ásia”. Por outro lado, nas uniões mistas, apenas fazemos referência às mulheres casadas com um indivíduo nascido em França pois as uniões com homens nascidos noutros países mostravam valores residuais.

[23] Com o intento de homogeneização dos testes empíricos, as regressões logísticas desta secção foram todas efectuadas com uma mesma amostra. Trabalhamos com uma população de 3 499 imigrantes portugueses em França com mais de 18 anos. Entre estes encontram-se 2149 mulheres e 1350 homens. As mulheres e os homens são incluídos na mesma análise o que nos permite de avaliar o efeito próprio do sexo.

[24] Cf. nota de roda-pé número 6.

[25] O X2 de cada um dos três modelos são muito significativos. A acumulação de variáveis a cada modelo melhora a qualidade do modelo em relação ao anterior.

[26]É também importante salientar a existência de outros estudos que mostram que as mulheres em contexto migratório são posicionadas numa situação de fragilidade, quiça numa posição onde se encontram vulneráveis a diversas violências, tanto na esfera privada como pública (Menjivar, 2002:906; Morokvasic, 1984:893).

 

Maria Lamas, As Mulheres do Meu País, Lisbonne: Actuális, Lda., 1948

Extrait :

« Uma camponesa do Alto Minho recebeu do marido, emigrado há dezoito anos na América do Norte, uma carta em que lhe anunciava o seu próximo regresso. Não era, porém, uma carta vulgar. Exprimia alguma coisa mais do que a alegria de voltar para junto da companheira e dos dois filhos que deixara pequeninos, agora homem e mulher feitos. A lembrança da mulher jovem e bela, que ele levara no coração e o acompanhara sempre, persistia. Fora ela que tornara mais forte o seu desejo de triunfar, para voltar, de cabeça erguida, ao lar distante. E recomendava, na sua linguagem de homem de poucas letras, amoroso, mas rude: “Põe-te bonita! Olha que eu vou daqui habituado a ver mulheres muito lindas! Quero encontrar-te como tu eras quando gostei de ti. Vais viver como uma senhora, o tempo dos trabalhos acabou. Quando fores ao meu lado, com os nossos filhos, todos nos hão-de invejar.”

A mulher ouvia e tornava a ouvir ler a carta. Não sabia se era alegria ou tristeza que sentia. O marido voltava. Ela era rica. Ele só agora lho dizia claramente. Porque tinha ela vontade de chorar ? Dizem que também se chora de felicidade… Mas o que lhe martelava o cérebro, magoando-a sem piedade, como se a carta não dissesse outra coisa, eram aquelas frases: “Olha que vou daqui habituado a ver mulheres muito lindas! Quero encontrar-te como tu eras quando gostei de ti.”

Sim, ela fora a rapariga mais bonita da aldeia. Tinha vinte e cinco anos quando o seu homem abalara. Agora estava uma velha… Olhava as mãos calejadas, da cor da terra, e via nelas a sua vida arrastada, toda privações e trabalho, para que as leiras não deixassem de produzir o seu sustento e dos filhos, enquanto o marido andava em busca da fortuna, do outro lado do mar.

Sucumbida, aparvalhada, repetia mentalmente: “Olha que vou daqui habituado a ver mulheres muito lindas!”

Sentia cobardia de olhar-se ao espelho. Bastava mirar as outras mulheres da sua igualha e do seu tempo para se ver… De que servia o marido voltar? Ela sentia-se cansada, velha antes de tempo, e nunca mais estaria à vontade junto dele, depois de receber aquela carta. Que ela nem fazia bem ideia de como seriam essas mulheres muito lindas, numa terra onde tudo era tão diferente, segundo dizia quem de lá voltava.

O seu homem queria-a como ela era quando gostaram um do outro, para gozarem juntos a riqueza que ele ganhara. E ela, de humilhada pela decepção que o marido teria, ao vê-la tão mudada, quase desejava a morte. Assim o confessou, em meias palavras, com lágrimas nos olhos, mas sem pieguice, como se, de repente, tivesse despertado nela a consciência do seu drama e a vida se lhe apresentasse injusta, na sua implacável rudeza.” (p. 101-102)

Observations : « Ce livre est l’expression de ma solidarité fraternelle envers les femmes de mon Pays » écrivait Maria Lamas dans l’édition originale (3 tomes, parus entre 1948 et 1950). Elle souhaitait, au moins, qu’il ébranlasse l’indifférence, voire l’ironie avec laquelle les portugais trait(ai)ent les questions féminines.

Journaliste, écrivaine, Présidente du Conseil National des Femmes Portugaises, membre du Conseil Mondial de la Paix, exilée politique (1962-1969, à Paris), Maria Lamas (1893-1983) sillonna le Portugal, durant 2 ans, à la rencontre des femmes. Elle présidait alors (1945-1947) le CNMP, fondé au cours de la Première République, en 1914, en tant que section portugaise de l’International Council of Women. Et lorsque, en 1947, le gouverneur civil de Lisbonne ordonne la fermeture du Conseil National des Femmes Portugaises, jugé subversif, au profit de l’Oeuvre des Mères pour l’Education Nationale (OMEN) mise en place par l’Estado Novo, en 1936, dans le but « d’éduquer et d’orienter les femmes », Maria Lamas lui répond en publiant le résultat de l’enquête qu’elle avait menée sur la dure condition de la femme portugaise.

A travers cette œuvre unique, nous prenons connaissance du pays réel, des conditions de vie et de travail de ces femmes condamnées à une existence sans merci dans les montagnes de l’intérieur du pays, avec des maris absents, partis loin pour gagner leur vie ; nous apprenons leurs ribambelles d’enfants, les maladies, le manque de médicaments, et leur résignation à voir partir leurs « angelots vers le ciel » dans l’espoir qu’ils y trouvassent une vie meilleure. Nous prenons connaissance de la résistance mais aussi de la combativité des femmes, toujours à la tête des protestations contre toute aggravation des conditions de vie déjà si précaires ; de la beauté des jeunes femmes et de leurs rires communicatifs, mais qui perdent toute leur fraîcheur presque aussitôt après le mariage, « car même si le mari ne les maltraite pas, la vie se charge de le faire » ; des femmes qui transportent le lait, de celles qui font sécher la morue ou qui sont employées dans la construction des routes ; des femmes qui travaillent courbées, des journées entières, dans les rizières ou les champs de blé, sous un soleil éclatant, et qui ne reçoivent que 2/3 du salaire d’un homme, pour le même travail ; du caractère indépendant des femmes de l’Alentejo « qui préfèrent une existence incertaine, avec de grandes privations, à la vie de servante chez les riches propriétaires terriens ou dans les villes » ; des femmes de l’Ile de Madère, qui passent des heures courbées au-dessus de leurs broderies pour gagner trois fois rien ; de toutes les femmes des campagnes reculées, souvent analphabètes, arriérées, superstitieuses, « même si elles sont, en général, vives d’esprit et espiègles » ; de toutes ces femmes qui acceptent la suprématie des maris ; des ouvrières qui travaillent dans le textile, la fabrication du chocolat et des produits de parfumerie ; des travailleuses des mines de S. Pedro da Cova, qui transportent le charbon sur leurs têtes et poussent devant elles d’énormes et lourds wagons ; des femmes qui travaillent dans l’industrie de la filigrane, dans les usines de faïence, dans les fabriques de conserves et les usines de liège ; de l’immense bataillon des couturières, pliées huit heures durant sur leur ouvrage, à l’usine ; des employées de maison qui viennent des villages et rejoignent les villes où elles exercent un travail ingrat, mal payé et non valorisé ; des femmes qui gardent les voies ferrées ou de celles qui, dans les gares, transportent les bagages ; des vendeuses de poisson, des lavandières ; de celles qui, ayant bénéficié d’une plus grande scolarité, sont enseignantes, employées de bureau, infirmières, … ; et aussi de toutes celles « sans profession » (« domésticas ») qui travaillent chez elles et dont la vie se réduit au quotidien – des êtres aliénés ou révoltés, selon leur capacité de résignation…

Comment une recherche et une édition d’une telle ampleur (471 pages) fut-elle possible durant une dictature qui prônait un idéal féminin que Maria Lamas entendait, justement, dénoncer? (cf. Maria Antónia Fiadeiro). Il fallut, par ailleurs, attendre 50 ans avant que l’ouvrage ne soit réédité (Editorial Caminho, 2003).

En lisant ce livre, on mesure l’immense chemin parcouru par toutes les femmes qui ont pu/décidé de quitter leur pays en quête de jours meilleurs ; et on ne peut que célébrer leur énergie et leur capacité de réinvention de la vie dans des conditions qui, souvent, durant les premiers temps de leur transplantation, furent encore plus terribles que celles endurées au Portugal.

Florence Lévi, « Évolution de femmes portugaises immigrées à Paris et en banlieue parisienne », L’Année sociologique, vol. 26, 1975, p.153-177

« Au nord du Portugal le mari et la femme travaillaient souvent ensemble sur la propriété familiale. Le lieu de travail était commun –sauf quand le mari avait un emploi non agricole -, mais il existait une division du travail, la femme accomplissant des tâches moins lourdes que l’homme. C’est hors du travail que les lieux et les pouvoirs de l’homme étaient distincts : l’intérieur (la maison) était le domaine de la femme et son pouvoir s’y exerçait sans intervention de l’homme, alors que l’extérieur (café, amis) était le domaine de l’homme. L’homme avait le droit de se distraire et de s’amuser alors que la femme devait accomplir ses tâches domestiques. Avec l’émigration, la situation s’inverse dans la mesure où les lieux de travail deviennent distincts tandis que les lieux de loisir ont tendance à devenir communs, à cause de la télévision, du nombre plus restreint d’amis du mari, de l’absence des parents de la femme. […] En France, les Portugaises sont donc plus nombreuses à se révolter contre le cumul des tâches qui fait d’elles des « esclaves ». Dans la plupart des cas l’aide du mari est considérée comme normale, mais elle est difficile à exiger de quelqu’un qui n’y a pas été habitué et qui, même s’il ne le refuse pas, ne sait pas. On observe donc un désir de changement qui se heurte à des résistances d’ordre culturel. » (p.168-169)

Observations : L’auteur s’interroge sur l’évolution psychologique de femmes Portugaises immigrées dans la région parisienne, et montre que les valeurs apprises dans la société rurale de départ, une société patriarcale, sont ébranlées, mais résistent à un changement radical.

Carolina LEITE, « Femmes et enjeux familiaux de la double résidence », D’une maison l’autre, parcours et mobilités résidentielles, Philippe Bonnin et Roselyne de Villanova (dir.), Grane, Creaphis, 1999, p. 295-312

 

« … les femmes semblent, plus souvent que les hommes, s’attacher au mode de vie urbain. Différents facteurs sont à l’origine de ce choix : la configuration même de l’espace urbain atténue le poids du contrôle social et ouvre la possibilité d’utilisation d’un nombre de services conséquents ; l’accès au salariat produit une visibilité nouvelle du travail (le travail de beaucoup de ces femmes, d’origine rurale, n’était pas rémunéré) et le marché de l’emploi offre une plus forte diversité ; par ailleurs, les occasions et les modalités de socialisation se multiplient, créant la possibilité d’une autonomie personnelle, jusqu’alors jugée impensable.

La perception du territoire urbain par les femmes migrantes est une question-clef si l’on veut suivre les déroulements récents de leur trajectoire résidentielle et les différences de valeur attachées aux deux espaces lorsqu’elles se trouvent propriétaires dans deux pays. C’est ici que les choix des femmes face à la ville se croisent avec les choix de l’habiter. Plus l’insertion urbaine est valorisée moins ces femmes auront envie de rentrer au village d’origine pour pouvoir profiter – de façon permanente – de leur maison de rêve et de leur statut de propriétaire, pour tant plus visible ici [ au Portugal] que n’importe où ailleurs. » (p.303-304)

Alfredo Margarido – Elogio do ‘bidonville’, in Latitudes, n°5, Avril/Mai 1999, p.14-20Alfredo Margarido – Elogio do ‘bidonville’, in Latitudes, n°5, Avril/Mai 1999, p.14-20

« Não sabemos ainda onde será mais alegre : se aqui nas barracas a beber uns copinhos e com umas cantaroladas toda a noite, se naqueles alojamentos bonitos a falar baixinho para não incomodar os franceses. » (Fala recolhida por Adelino Gouveia, in Diário de Notícias, dez. 1970 ; página redigida por emigrantes portugueses em França) (p.18)

« […] Uma parte dos emigrantes carrega consigo as condições culturais do campo português, que não só não possui nem tradição nem cultura urbanas, mas nem sequer conhece muito bem as diferentes funções do Estado. […] (Regista-se) durante a primeira fase da vida em França e particularmente em Paris, a necessidade de uma forte coesão, única maneira de assegurar a transferência de uma sociedade eminentemente rural, para uma metrópole urbana como sempre foi uma cidade como Paris. O génio português não reside na exaltação da saudade, como ainda se pretende, mas antes na capacidade de adaptação a condições sociais e a tarefas técnicas que não pertenciam ao sistema dos valores rurais portugueses.

É nestas condições que podemos registar a intervenção, quando não a invenção do ‘bidonville’. […] sistema de urbanização da colectividade : o grupo assegura desta maneira a sua autonomia, face à sociedade dominante, que os sociólogos teimam em designar como sendo ‘la société d’accueil’, a sociedade de acolhimento, quando na verdade, e quase sempre, se trata da sociedade que repele ou rejeita. Compreende-se por isso que o gueto, de que o bidonville é uma expressão moderna, possa surgir como solução adoptada pelos emigrantes, perante as condições que lhes são oferecidas pela sociedade onde sobretudo pretendem trabalhar. » (p.15-16)

Traduction : “Nous ne savons pas encore ce qui est plus gai : si c’est ici, dans les baraques, en buvant des coups et en chantonnant toute la nuit, si c’est dans ces beaux logements, où il faut parler tout bas pour ne pas déranger les Français. » (Dires recueillis par Adelino Gouveia, in Diário de Notícias, déc. 1970; page rédigée par des immigrants portugais en France)

[…] Une partie des émigrants transporte avec eux la culture rurale portugaise ; non seulement ils ne possèdent pas de tradition ni de culture urbaine, mais ils ne connaissent pas vraiment les différentes fonctions de l’Etat. […] (On enregistre) durant la première phase de leur vie en France et particulièrement à Paris, le besoin d’une cohésion forte comme seul moyen d’assurer le passage d’une société éminemment rurale vers une métropole urbaine comme Paris. Le génie portugais ne réside pas dans ‘l’exaltation de la saudade’, comme on continue de prétendre, mais plutôt dans la capacité d’adaptation à des conditions sociales et à des tâches techniques qui n’appartenaient pas à l’univers rural portugais.

C’est dans ces conditions qu’on enregistre l’intervention, sinon même l’invention du bidonville. […] système d’urbanisation de la collectivité: de cette manière, le groupe garantit son autonomie face à la société dominante que les sociologues persistent à désigner comme étant la « société d’accueil », alors qu’en vérité il s’agit, presque toujours, de la société qui repousse ou qui rejette. On comprend ainsi que le ghetto, dont le bidonville est une expression moderne, puisse surgir comme solution adoptée par les émigrants face aux conditions qui leur sont offertes par la société où ils prétendent surtout travailler. » (p.15-16)

Observations:

Alfredo Margarido fait partie de ces intellectuels portugais qui, pour des raisons politiques, ont longtemps vécu à l’étranger. Auteur d’une œuvre multi facettes et à contre-courant, Alfredo Margarido est avant tout un libre penseur concerné par les problèmes de société et leurs questions affines, ethnologiques, anthropologiques, culturelles. Le numéro que lui consacre la revue Latitudes (n° 24, septembre 2005) permet de découvrir l’étendue des domaines explorés par l’auteur. Durant son exil à Paris, où il arriva en 1964, Alfredo Margarido fut un des rares intellectuels portugais à prendre position par rapport à l’impressionnant flux migratoire qui allait caractériser les années 60. Mais il fut, surtout, un des rares à ne pas porter un jugement sur ses compatriotes qui vinrent aider à peupler les quelques 170 bidonvilles existant alors aux alentours de Paris. Tout en portant un regard critique sur les politiques portugaise et française à l’origine de cet exode et des conditions dans lesquelles il se déroulait, A. Margarido chercha, par ailleurs, à comprendre ce qui pouvait pousser les Portugais à résister au démantèlement des bidonvilles lorsque les autorités décidèrent leur résorption (lois Debré, 1964, et Nungesser, 1966).

A propos de la résorption des bidonvilles et des luttes menées par les habitants, voir le film « Lorette et les autres », tourné par Dominique Dante en 1973 (fiche disponible dans l’espace cinémathèque).

« Não sabemos ainda onde será mais alegre : se aqui nas barracas a beber uns copinhos e com umas cantaroladas toda a noite, se naqueles alojamentos bonitos a falar baixinho para não incomodar os franceses. » (Fala recolhida por Adelino Gouveia, in Diário de Notícias, dez. 1970 ; página redigida por emigrantes portugueses em França) (p.18)

« […] Uma parte dos emigrantes carrega consigo as condições culturais do campo português, que não só não possui nem tradição nem cultura urbanas, mas nem sequer conhece muito bem as diferentes funções do Estado. […] (Regista-se) durante a primeira fase da vida em França e particularmente em Paris, a necessidade de uma forte coesão, única maneira de assegurar a transferência de uma sociedade eminentemente rural, para uma metrópole urbana como sempre foi uma cidade como Paris. O génio português não reside na exaltação da saudade, como ainda se pretende, mas antes na capacidade de adaptação a condições sociais e a tarefas técnicas que não pertenciam ao sistema dos valores rurais portugueses.

É nestas condições que podemos registar a intervenção, quando não a invenção do ‘bidonville’. […] sistema de urbanização da colectividade : o grupo assegura desta maneira a sua autonomia, face à sociedade dominante, que os sociólogos teimam em designar como sendo ‘la société d’accueil’, a sociedade de acolhimento, quando na verdade, e quase sempre, se trata da sociedade que repele ou rejeita. Compreende-se por isso que o gueto, de que o bidonville é uma expressão moderna, possa surgir como solução adoptada pelos emigrantes, perante as condições que lhes são oferecidas pela sociedade onde sobretudo pretendem trabalhar. » (p.15-16)

 

Colette Pétonnet – On est tous dans le brouillard, Paris, C.T.H.S., 2002

« Si la boue et les intempéries gênent l’observation, en revanche la vision du bidonville l’été donne la clé d’un mode d’habiter encore rural dont la caractéristique est d’intégrer le dehors. Mais se hâter de conclure à un habitat rural serait une erreur. Comme le bidonville sans son ensemble délivre les messages d’un groupe, l’habitation proprement dite est le langage individuel de gens placés dans une situation biculturelle, de gens soumis au changement. L’habitation est l’expression topique de désirs contradictoires et d’un mode d’être en mutation, et, comme telle, aussi variée que les individus auxquels elle convient à un moment donné de leur histoire.

José, le frère de Jorge, relogé par son employeur dans un de ces logis ouvriers construits après la guerre en matériaux légers, nous présenta sa maison en ces termes : « Elle n’est pas formidable, mais il y a beaucoup de terrain. » Et derechef, avant d’entrer, il nous fit visiter son jardin et les dépendances qu’il y avait construites.[1]

Il résumait ainsi une conception de l’habiter toute paysanne, celle qui, autrefois, à cause de la présence des bêtes et des grains, consacrait peu de place à la maison réservée au gîte, la vie se passant aux champs, et qui dispersait à l’extérieur, dehors ou sous un « toit », une grande partie des activités domestiques.[2] Les dépendances contenant tout ce dont l’homme avait besoin pour se nourrir et travailler, celui-ci était habitué à passer continuellement du dedans au dehors, chaque fois qu’il voulait du vin, du bois ou un outil. » (p. 91)

Observations :

Cet ouvrage est la réédition de la thèse d’Etat de l’ethnologue, dont une première version tronquée parut en 1979. Le chapitre traitant des espaces (bidonvilles, cités et quartiers populaires), résumé alors en une vingtaine de pages, ne fut repris dans son intégralité que trois ans plus tard, en 1982. Ces deux publications distinctes de la même œuvre renvoient au contexte idéologique et politique français entre 1970 et 1980, avec l’émergence des théories du nouvel urbanisme et la volonté d’éradication de l’habitat insalubre. Les logements spontanés, traces honteuses d’un reste de pauvreté qu’on veut à tout prix résorber, sont alors systématiquement détruits. Or, Colette Pétonnet démontre que les bidonvilles peuvent être des lieux de vie dignes, dont la disparition, et le remplacement par un habitat normalisé, constituent pour leurs résidents une violence et une aliénation et renforcent encore davantage les processus de paupérisation et de marginalisation.

« Rédigé dans un style très direct et d’une lecture particulièrement attachante, ce livre rompt avec les modèles traditionnels de la sociologie ou plutôt, sans les ignorer, il les habille de faits cueillis au ras de la réalité la plus concrète. On est frappé par la profonde compréhension humaine dont Colette Pétonnet fait preuve et par la qualité de sa connaissance intime du milieu dans lequel, plusieurs années durant, elle a élaboré son ouvrage. […] L’état d’aliénation matérielle dans lequel sont tenus les habitants des cités de transit vis-à-vis des autorités administratives dispensatrices des différents types de logement a conduit Colette Pétonnet à dégager les qualités humaines de l’habitat en bidonville, ce qui laisse le lecteur un peu perplexe. Pourtant, sur un point important, l’auteur a raison : la libre construction de son habitation, son extension éventuelle, les contacts privilégiés avec les membres du groupe dont les liens de parenté ou d’amitié sont l’essentiel font à l’immigrant un environnement humain positif, qui l’oriente vers des formules de vie vivables. » (préface d’André Leroi-Gourhan, p .15-16)

A lire également l’interview de Colette Pétonnet par Thierry Paquot, réalisée il y a dix ans (1995) : www.univ-paris12.fr/iup/8/urbanism/881/petonnet.htm.


[1] Le potager

[2] La fermière, par exemple, lavait le linge dans le “toit” où l’on cuisinait la pâtée des cochons. Elle plumait un poulet sous le hangar.